Roberto Setubal, do Itaú-Unibanco, entrevista Marcel Telles, do 3G Capital, para a edição de março da Época Negócios. O rico bate papo sobre cultura corporativa, atração e retenção de talentos, aquisições, entre outros temas, é uma lição para o empresariado brasileiro.
Conceitos de liderança, cultura de ownership, valorização de talentos são alguns dos temas abordados e servem de lição para empresas de diferentes tamanhos e perfis. Mesmo as menores empresas precisam pensar grande e estabelecer padrões e conceitos que vão fortalecer e perdurar na sua gestão.
Veja alguns trechos desta entrevista.
Ao final da entrevista de uma hora e meia na sede da Ambev, depois de se despedir de Roberto Setubal, o anfitrião Marcel Telles comentou: “O Roberto é impressionante, né? Veio com todas as perguntas prontas, divididas por temas, organizadas. O Itaú é ele. Fosse eu o entrevistador e seria tudo no improviso...”
“É preciso ter a cabeça de dono nas empresas. E dono acorda às 5 e só sai quando a padaria fecha”O dono do Itaú Unibanco, recém-empossado presidente da holding financeira do banco, futuro presidente do conselho, diz que aprontou as perguntas quando se dirigia à Ambev, ainda no helicóptero, durante o trajeto de pouco mais de oito minutos entre o bairro do Jabaquara, sede do Itaú, e a região do Itaim, QG da cervejaria. Chegou, britanicamente, no horário combinado (meio-dia), tomou o elevador de número 4, desceu no 4º andar e foi recebido por Marcel, sócio do 3G Capital (dono do Burger King, da Heinz e da AB InBev, controladora da Ambev). O empresário levou o banqueiro para um rápido tour pelo escritório. Mostrou, orgulhoso, o espaço “sem salas nem divisórias (aqui, é transparência total)”, apontou cada departamento, falou sobre a profusão de jovens da companhia e exibiu a praça do sol, local onde a turma da Ambev recebe seus convidados, geralmente para reuniões rápidas. Ali, a dupla posou para as fotos. Quinze minutos depois, Setubal e Marcel já estavam na pequena sala de reunião onde aconteceria a entrevista-almoço. Sushi com Guaraná Antarctica. “Sou eu que faço as perguntas, né? Pelo menos foi isso o que eu entendi”, disse Setubal. Marcel confirmou. Setubal sacou o celular, correu o dedo pela tela, achou a lista de perguntas e mandou ver:
Roberto Setubal: Eu queria começar falando de cultura empresarial, que é algo importantíssimo e para a qual não se dá o devido valor no Brasil. O histórico de vocês mostra claramente que existe um ponto comum nas empresas do grupo, que é justamente a cultura corporativa desenvolvida desde os tempos de Garantia. Quais os elementos dessa cultura que você acha mais importante e quais deles tiveram o maior impacto no sucesso de empresas como AB InBev, Burger King, Heinz...?
Marcel Telles: Se eu tivesse de definir numa única palavra, Roberto, diria que temos a cultura de ownership. A gente quer que todo mundo se sinta dono, nos mais diferentes níveis. Dono por ser o dono daquela máquina. Dono daquela área financeira. Daquele projeto. E dono da empresa também, através da sociedade. Nossa característica mais importante é uma busca incessante pelas pessoas que funcionam bem nesse ambiente. Nossa cultura é de alta performance e de alta demanda. Porque dono é dono, Roberto. Dono acorda às 5 da manhã e só sai quando a padaria fecha. Então, tem de ter esse tipo de atitude aqui. E não é todo mundo que tem ou que gosta. É que nem esporte de alta performance. Tem alguns que querem. Outros, não. Nossa cultura é um pouco assim.
Roberto Setubal: Mas o que isso significa, na prática, para o executivo do segundo e terceiro escalões? Não falo do CEO, porque este já deve estar alinhado com toda a cultura.
Marcel Telles: Significa, primeiro, que nesse nível ele já é provavelmente sócio importante da companhia. Já tem ações. O patrimônio dele está muito ligado ao desempenho da empresa. Segundo, ele tem uma autonomia muito grande. Você dá liberdade de um lado, mas responsabilidade do outro. E ele tem um compromisso importante, fundamental até para sua avaliação, que é a formação de gente. Temos de ver se esse executivo está formando gente que pode ser melhor do que ele. Até para que ele suba. Isso é como a gente olha essa pessoa.
Roberto Setubal: Você fala bastante da questão de pessoas. Como se dá o processo de atração de talentos, retenção e desenvolvimento nas empresas do grupo?
Marcel Telles: Atração vem da gente mesmo. Diria que 99% de quem a gente recruta vem do programa de trainee. E somos nós que vamos às principais faculdades do mundo. Não é o cara do RH. Eu é que vou. Ou o Carlos Brito [CEO da AB InBev], ou o João Castro Neves [ex-presidente da Ambev, atual presidente da AB InBev para a América do Norte]. Isso faz uma diferença brutal. Na medida em que você tem um histórico, a coisa fica mais fácil. O que funciona muito nessas visitas é levar junto um trainee que está conosco há dois, três anos e dizer: “Ó, esse aqui entrou como trainee e eu já dei uma fabricazinha para ele tocar na República Dominicana ou alguma coisa comercial no Equador”. Aqui, é o seguinte, Roberto: a gente dá o osso maior que o cara pode roer e vê se ele consegue roer. Isso deixa o jovem muito animado. Jovem é idealista pra burro, você sabe. Então, é fácil de vender o nosso sonho. Só que temos de entregar o que a gente vendeu, senão ele vai embora. Então, o mais importante na retenção é deixar o trainee crescer na velocidade do esforço e do talento, limpando a área, removendo todos os obstáculos da frente dele. Tem de deixar a pista livre. Porque, se bobear, o jovem bom, esperto, atravessa a rua e vai para outro lugar.
Roberto Setubal: Hoje, do time lá de cima da companhia, quantos vieram destes programas e quantos vocês foram recrutando no mercado?
Marcel Telles: Em relação aos principais executivos da companhia, eu diria que de 80% a 90% vêm do programa de trainee. Tem gente de fora, mas não é comum.
Roberto Setubal: Imagino que o nível de renovação ali dentro da antiga Anheuser-Busch deve ter sido enorme...
Marcel Telles: A gente faz isso. O primeiro escalão normalmente sai, porque põe muito dinheiro no bolso e não quer mais fazer aquilo que fez durante anos. Muita gente do segundo e do terceiro escalão gosta do que faz e começa a se mover. Alguns são aproveitados na empresa, outros vão ao mercado. E a gente põe um bando de jovem na equipe. A dinâmica tem de ser de abrir o caminho. Então, sim, tem uma renovação grande. E muita gente está progredindo por lá. É assustadora a quantidade de talentos nos Estados Unidos. São imigrantes ou filhos de imigrantes que trabalharam bastante para chegar a Stanford, Harvard. Esse pessoal vem com faca no dente. Um exemplo é um jovem, filho de um imigrante nigeriano, que conseguiu com o rúgbi fazer um MBA em Harvard. Fui entrevistar o garoto e ele me disse um negócio bacana, que não saiu de minha cabeça. Perguntei o que ele tinha aprendido no rúgbi e que poderia ser transportado para a vida real. Ele disse: “eu aprendi a nunca passar a bola numa situação que pusesse qualquer colega em risco”. Incrível. O cara está deslanchando na empresa.
“Cobramos muito, mas temos de deixar a pista livre para o jovem crescer. Senão, ele vai embora” Marcel Telles
Roberto Setubal: Pegando esse gancho... A cultura de vocês valoriza muito o talento, a competência individual, a capacidade de execução. Como fica o trabalho em equipe? Não existe aí nenhum tipo de inconsistência nessa cultura empresarial?
Marcel Telles: A gente sempre presta atenção nisto. A primeira coisa que ajuda muito é o espaço aberto. Espaço aberto, sem salas, sem divisórias, evita conversinhas por trás, agenda que não seja do trabalho. Outro fator é nosso desdobramento de metas. Para eu bater minha meta pessoal, primeiro a companhia tem de bater a meta. Depois a zona [a região] tem de bater a meta. Aí a minha área tem de atingir a meta e só então tem o peso da minha meta pessoal. Então, se eu não trabalhar em equipe, minha área não chega lá. Eu posso ter o melhor desempenho do mundo que não adiantou nada. Nós queremos sempre crescer 10% de Ebitda todo ano. E todos têm de trabalhar pensando nisso.
Roberto Setubal: Isso também gera uma pressão para que todo mundo dê um pouco de palpite na área do outro.
Marcel Telles: Uma relação bastante saudável, de cada um apertando o outro. Enfim, dá trabalho. Você também toca um negócio enorme e sabe o trabalho que essas coisas dão.
Roberto Setubal: Como vocês avaliam a importância do currículo na hora de contratar? Vale mais a faculdade ou a experiência de vida?
Marcel Telles: Eu quero aquele cara, e me desculpe o clichê, com um brilho no olho e faca no dente. É personalidade. E esta você não muda. Se vier junto com boa educação, é espetacular. Por isso que eu estava citando os Estados Unidos. Lá, a gente está começando a ter um nome que nos permite entrar nas universidades de ponta e pegar o cara que, além da boa formação, tem uma história de vida que mostra resiliência, vontade de chegar lá. Eu diria, Roberto, que aqui a personalidade está sempre acima da educação formal. Recentemente eu entrevistei uma russa, que foi para os Estados Unidos jogar tênis, sofreu um acidente grave e largou o esporte. Aí ela botou toda a energia do tênis no estudo, se formou em Wharton e tem faca no dente. É aquele tipo de pessoa que você entrevista e diz Caramba! E temos uma meta específica para isso. O Brito tem de me apresentar todo ano dez pessoas assim, que podem crescer bastante na empresa. E ele, obviamente, desdobra essa meta para baixo.
Roberto Setubal: E qual é o passo seguinte no desenvolvimento da carreira? Como se dá a meritocracia?
Marcel Telles: Osso maior do que o cara pode roer. Sempre assim. E uma vez por ano a gente faz uma revisão das pessoas – de 50 a 250 – que realmente a gente quer olhar. Praticamos isso há muito tempo. Chamamos de Xadrez de Gente. Olhamos cada cara para ver qual é o próximo passo da carreira dele e fazemos até um leilãozinho informal. Vou dar um exemplo. Tem um sujeito no financeiro que o superior não está dando a “velocidade” adequada. O cara de vendas pode dizer: “manda para cá que eu tenho um pulo para a carreira dele”. Todo ano tem esse xadrez de gente.
Roberto Setubal: Mas não pode levar de lado, né? Para função similar hierarquicamente.
Marcel Telles: Não. Isso não. É promoção. Claro, vai ter sempre uma gritaria. Mas na próxima vez, o que perdeu aprende a gerenciar o talento que está na equipe dele.
Roberto Setubal: E como faz para limpar o trilho, abrir espaço? Obviamente a companhia vai crescendo, abrindo outros empreendimentos e levando gente para outras unidades, mas nem sempre você tem unidades para dar espaço para todo mundo.
Marcel Telles: Acho que todo mundo aqui conhece a regra do jogo, Roberto. Todos nós temos metas e uma revisão trimestral dessas metas. Além disso, há uma transparência total no processo de avaliação. Então não tem surpresa. Às vezes a companhia anda mais rápido do que a pessoa consegue acompanhar. Mas ela com certeza vem recebendo um feedback. Por outro lado, todo mundo aqui, em geral, ganha bastante dinheiro. Provavelmente ele sairá bem recompensado por aquilo que fez.
Roberto Setubal: O que mais motiva as pessoas? É a remuneração, o projeto...
Marcel Telles: Eu acho que o sonho. Enquanto você tem um sonho, qualquer que seja, dá um friozinho na barriga.
Roberto Setubal: Mas qual é o sonho possível para a AB InBev nessa altura?
Marcel Telles: Tem sonho, sim. A gente continua querendo ser o melhor no nosso ramo. E tem um desafio muito grande de se adaptar ao ambiente de negócios, que está mudando. Se no passado tínhamos um sonho mais orgânico de crescimento, agora o sonho é muito mais de responder bem às mudanças que estão acontecendo por aí, que são grandes.
“Todo ano, olhamos seis grandes negócios que, se acontecessem, a gente gostaria de participar” Marcel Telles
Roberto Setubal: Como se dá uma aquisição? Quem decide?
Marcel Telles: De onde vem, né? Vem de todos os lados. Eu diria que é uma discussão permanente. É muito mais uma questão de oportunidade. A gente tem uma cabeça assim: se você é muito bom no que você faz e está atento ao mundo, em algum momento vai passar aquele cavalo selado.
Roberto Setubal: E quando acontece você já está preparado, não?
Marcel Telles: Sim. Porque todo ano o conselho e os executivos fazem essa revisão. Todo ano a gente olha as seis coisas que, se acontecessem, nós gostaríamos muito de participar. Então, a gente conhece bem os números, conhece bem a companhia, sabe o quanto vale, o que propor, pensa muito em como fazer.
Roberto Setubal: Quando vocês compram uma empresa, qual é a primeira ação para implementar o modelo de alta performance?
Marcel Telles: Primeiro é explicar claramente o que é a cultura e qual é a regra do jogo. Normalmente, alguém como o Brito ou o Ricardo Tadeu [da Corona, no México], promove encontros com funcionários, fornecedores, fala com 5 mil pessoas. E às vezes fala coisas que as pessoas não gostam de ouvir, mas elas sempre saberão exatamente qual é a regra do jogo. Quando você passa a implantar as metas e os programas, o aculturamento se torna natural.
Fonte: Entrevista originalmente publicada na edição de março de Época NEGÓCIOS
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